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STF anula processo contra Vado, empfresários, servidores e assessores no caso da “Operação Loki” do GAECO

Fonte: ORC

Com a colaboração de Tarciso Manso

 

STF anula processo contra Vado, empresários, servidores e assessores no caso da “Operação Loki” do GAECO

O processo RHC 254.664/SP – STF, com origem na chamada “Operação Loki”, deflagrada pelo GAECO do Ministério Público de São Paulo para investigar uma suposta organização criminosa instalada na Prefeitura de Orlândia/SP, que estaria envolvida em:
• Fraudes em licitações
• Peculato
• Corrupção
• Lavagem de dinheiro
• Falsificação de documentos
• Formação de cartel                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Foi anulado.
Entre os investigados estavam servidores públicos, empresários e o então prefeito Oswaldo Ribeiro Neto (“Vado”), que tinha foro privilegiado.
A base central  da anulação do processo está na Violação ao Juiz Natural e à Competência
Durante as investigações:
• O Ministério Público dividiu a investigação em dois procedimentos:
• Um para o prefeito (que tinha foro privilegiado) e foi enviado ao TJSP.
• Outro para os demais investigados (como Thiago Bianco), que ficou na 1ª Vara de Orlândia.
Contudo, o STF entendeu que essa cisão foi feita de forma ilegal, porque apenas o tribunal com competência para julgar o prefeito poderia decidir se haveria ou não o desmembramento do caso. O juiz de primeiro grau não poderia manter o restante da investigação por conta própria. Isso violou o princípio do juiz natural.
As Provas Obtidas
A partir dessa investigação paralela na vara de Orlândia, foram autorizadas:
• Quebras de sigilo telemático de e-mails
• Buscas e apreensões
• Análises de celulares e computadores
Essas provas serviram de base para a denúncia por exemplo de condenação de um dos assessores de Vado a:                                         • 6 anos, 2 meses e 20 dias de prisão
• Regime fechado
• Perda do cargo público e impedimento de exercer função pública por 8 anos
O Que o STF Decidiu
O Ministro Gilmar Mendes entendeu que:
• O juiz de Orlândia usurpou competência do TJSP ao não remeter o caso completo.
• As provas produzidas por esse juiz são nulas de pleno direito, por vício de origem (violação ao juiz natural).
• Todos os atos processuais decorrentes dessa quebra de legalidade foram anulados, incluindo:
• A quebra de sigilo dos e-mails
• A denúncia
• A sentença condenatória
Além disso, o ministro destacou que o prejuízo ao réu foi evidente, dado o tempo de prisão imposto e os efeitos da condenação.
Resultado:
• A condenação de Thiago Bianco foi anulada.
• As provas obtidas foram desentranhadas do processo.
• O caso deve agora ser reavaliado dentro da legalidade processual, partindo da autoridade competente (no caso, o TJSP, à época).

Veja posição oficial do STF

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 254.664 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

RECTE.(S) : THIAGO BIANCO

ADV.(A/S) : ANAMARIA PRATES BARROSO E OUTRO(A/S)

RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE

SÃO PAULO

 

DECISÃO: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus, com

pedido de medida liminar, interposto em favor de Thiago Bianco contra

acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça

(STJ), assim ementado:

“DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO

REGIMENTAL. COMPETÊNCIA. PRERROGATIVA DE FORO.

CISÃO DE PROCESSO. QUEBRA DE SIGILO TELEMÁTICO.

AGRAVO DESPROVIDO.

  1. Caso em exame
  2. Agravo regimental interposto contra decisão que não

conheceu de habeas corpus, no qual se alegava a inidoneidade do

julgamento pelo Juiz de primeiro grau, a invalidade das provas

decorrentes de medidas cautelares e a ausência de justa causa

para a quebra de sigilo telemático.

  1. Questão em discussão
  2. A questão em discussão consiste em saber se houve

incompetência do Juízo de primeiro grau para conduzir o

processo, considerando a condição de prefeito do

coinvestigado, e se as provas obtidas por meio de quebra de

sigilo telemático são válidas.

  1. A questão também envolve a análise da necessidade de

demonstração de prejuízo para a declaração de nulidade das

provas e a legalidade da quebra de sigilo telemático sem a

aplicação dos requisitos da Lei 9.296/96.

III. Razões de decidir

  1. O Tribunal de origem convalidou a separação do

processo, não havendo nulidade por incompetência, pois a

competência plena do Magistrado de 1º grau foi superveniente.

  1. A quebra de sigilo telemático foi considerada legal, pois

não se tratou de interceptação telemática, mas de acesso a

dados estáticos, sendo aplicável o Marco Civil da Internet.

  1. A defesa não demonstrou prejuízo concreto decorrente

das alegadas nulidades, conforme o princípio pas de nullité sans

grief.

  1. A fundamentação para a quebra de sigilo telemático foi

considerada idônea, e a revisão dessa conclusão demandaria

revolvimento fático-probatório, inviável na via eleita.

  1. Dispositivo e tese
  2. Agravo desprovido.

Tese de julgamento: ‘1. Como o Tribunal determinou

implicitamente a cisão do processo entre o réu com prerrogativa

de foro e o paciente, mostra-se correta a competência do Juízo

de primeiro grau para julgar este último. 2. A quebra de sigilo

telemático de dados estáticos não requer os requisitos da Lei

9.296/96. 3. A nulidade processual exige demonstração de

prejuízo concreto para ser reconhecida’.” (AgRg no HC

899.839/SP, eDOC 77 e eDOC 81)

O recorrente alega usurpação da competência constitucional do

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) em virtude do

desmembramento parcial do feito, uma vez que apenas a investigação

envolvendo detentores de foro por prerrogativa de função teria sido

encaminhada para aquela Corte, permanecendo no Juízo da 1ª Vara da

Comarca de Orlândia o procedimento quanto aos demais investigados

sem tal prerrogativa.

Consta dos autos que o recorrente foi um dos alvos da “Operação

Loki”, deflagrada para apurar a existência de organização criminosa

supostamente instalada na Prefeitura de Orlândia/SP e vinculada à

prática de crimes de fraudes em licitações, peculato, corrupção,

falsificação de documentos, uso de documentos falsos, lavagem de

dinheiro e formação de cartel perpetrados por servidores públicos

municipais e empresários.

Sustenta que, desde o início da referida operação, o Grupo de

Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério

Público do Estado de São Paulo (Gaeco-MPSP) tinha conhecimento da

ligação de Oswaldo Ribeiro Neto (“Vado”), prefeito daquela

municipalidade na época dos fatos, à empreitada criminosa.

Irresignado, o recorrente impetrou, sem êxito, habeas corpus perante o

TJSP e o STJ (eDOC 21 e eDOC 81, respectivamente), o que ensejou o

manejo do presente recurso ordinário constitucional (eDOC 87).

Noticia o recorrente que, durante o curso do writ no STJ, sobreveio a

sua condenação pelo delito do art. 2º, §4º, II, da Lei 12.850/2013, à pena de

6 (seis) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime inicial

fechado, além da perda do cargo e função e a interdição no desempenho

do exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos

subsequentes ao cumprimento da reprimenda.

Neste Supremo Tribunal Federal, reitera a tese de violação ao

princípio do juiz natural e ao devido processo legal. Suscita os seguintes

fundamentos, em resumo:

(i) ao tomar conhecimento da presença de investigado com foro por

prerrogativa de função, o magistrado de origem deveria remeter

imediatamente a integralidade dos autos à deliberação do TJSP, órgão

competente para efetuar o exame sobre a separação ou não do feito;

(ii) o juiz de piso não tem competência para, ele mesmo, manter a

cisão parcial da investigação, considerando a vis attractiva do foro

privilegiado e os precedentes deste STF;

(iii) a não avocação pelo TJSP do procedimento investigatório

quanto a todos os envolvidos não implica convalidação do

desmembramento parcial e do vício de processamento do feito perante

juízo incompetente;

(iv) o não envio da investigação completa ao TJSP macula de

nulidade os elementos de prova obtidos em desfavor do recorrente,

perdendo importância a discussão se o acesso aos e-mails trocados entre

os investigados (nos autos nº 1000456-21.2019.8.26.0404) configurou

quebra de sigilo telemático ou interceptação telefônica, pois contamina o

processo desde a sua origem;

(v) a decisão que deferiu a denominada “quebra de sigilo

telemático” dos e-mails carece de indicação de indícios de autoria,

individualização de condutas e demonstração da imprescindibilidade da

medida, tendo sido deferida em termos genéricos e imprecisos; e

(vi) o prejuízo do recorrente está demonstrado pelo quantum da pena

fixada na sentença condenatória.

Requer o provimento do recurso para que, em sede de medida

liminar, seja “suspenso o andamento da Ação Penal nº 1001613-

58.2021.8.26.0404, que encontra-se em tramite perante o Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo e, consequentemente dos efeitos da condenação, até o

julgamento do mérito do presente writ” (eDOC 87, p. 26).

No mérito, pleiteia o reconhecimento da nulidade da ação penal, o

seu trancamento e a anulação da sentença condenatória nela prolatada.

Subsidiariamente, almeja a declaração de “nulidade da decisão que deferiu a

quebra do sigilo telemático de e-mails trocados entre integrantes da suposta

organização nos autos n° 1000456-21.2019.8.26.0404, bem como das decisões

posteriores e, por conseguinte, da sentença proferida nos autos nº 1001613-

58.2021.8.26.0404, determinando-se o desentranhamento das provas obtidas por

meio da medida constritiva, bem como as provas derivadas, nos termos do art. 157, caput e §1º, do CPP” (p. 28). manifestou pelo não conhecimento do recurso e, se conhecido, pelo seu

desprovimento (eDOC 114).

É o relatório.

Decido.

A pretensão do recorrente merece provimento.

Consta dos autos que, em 22.8.2018, após a realização de verificação

preliminar, o Gaeco-MPSP instaurou o Procedimento Investigatório

Criminal (PIC) 19/2018 para investigar “a prática de crimes de Fraudes em

Licitações, Peculato, Corrupção, Formação de Cartel, Organização Criminosa,

relacionada a servidores públicos da Prefeitura Municipal de Orlândia”(eDOC

7, p. 135). Em setembro do mesmo ano, foi encaminhado a esse órgão email

enviado por vereadora da oposição, em que mencionava os nomes

do prefeito à época, da esposa dele e dos procuradores do Município de

Orlândia/SP e da câmara de vereadores em suposto esquema de

corrupção na prefeitura (eDOC 7, pp.143-156)

Em 2019, a “Operação Loki” foi desencadeada para averiguar a

existência de organização criminosa formada por servidores públicos

municipais em conluio com empresários para fraudar licitações e

favorecer certas empresas em troca de vantagem indevida.

Com o intuito de robustecer a investigação, o Gaeco-MPSP requereu

a quebra de sigilo telemático de contas de e-mails relacionadas a vários

investigados. O pleito foi deferido pelo Juízo da 1ª Vara da Comarca de

Orlândia, em 25.3.2019 (eDOC 11).

A partir dos dados obtidos, o órgão ministerial vislumbrou a suposta

ocorrência de outros delitos, tais como corrupção ativa e passiva,

formação de cartel e lavagem de dinheiro. Então, em 26.8.2019, postulou a

expedição de mandados de busca e apreensão e nova quebra de sigilo

telemático de contas de e-mails vinculadas a antigos e novos alvos (eDOC

12), o que foi autorizado pelo aludido juízo, em 28.8.2019 (eDOC 13).

Com a apreensão de celulares, computadores e pendrives, o Parquet

encontrou indícios da suposta participação de investigados detentores de

Ribeiro Neto (“Vado”), apontado como líder da organização criminosa

atuante no Município de Orlândia/SP.

O Juízo da 1ª Vara da Comarca de Orlândia, nas informações

prestadas ao STJ (eDOC 28), consignou que, posteriormente à citada

apreensão, o Gaeco-MPSP instaurou dois procedimentos investigatórios

(além do então existente PIC 19/2018): um referente aos agentes públicos

detentores de foro por prerrogativa de função (PIC 19/2019) e outro

relativo aos demais investigados (PIC 16/2020) (eDOC 28, p. 3).

Cada um dos procedimentos de investigação criminal ampliou o

espectro dos atos delitivos e dos seus respectivos autores. Assim,

considerando a quantidade de envolvidos e a complexidade dos fatos,

haja vista a extensão dos crimes para outras municipalidades, o Parquet

segmentou as pretensões acusatórias.

O PIC 19/2019, instaurado de forma separada, foi remetido ao TJSP,

que presidiu as investigações nos autos n° 2261864-26.2020.8.26.0000,

relativamente aos detentores de foro especial (eDOC 21, p. 7). Os demais

feitos foram reunidos no Juízo da 1ª Vara da Comarca de Orlândia.

Com a perda do mandato de “Vado” (decretada pela câmara

municipal em 14.9.2020), o processo a ele relativo foi redistribuído à

Comarca de Orlândia.

A apuração do delito de organização criminosa deu origem à Ação

Penal nº 1001613-58.2021, impugnada no presente recurso. Nela, o ora

recorrente, chefe de gabinete de “Vado”, figurou como denunciado

(eDOC eDOC 5, eDOC 6 e eDOC 7, pp. 1-133) e, atualmente, ostenta a

condição de condenado.

Feito esse breve retrospecto processual, reputo indevido o

desmembramento tal como realizado no caso concreto.

O STF possui jurisprudência consolidada segundo a qual cabe ao

próprio órgão judiciário titular de competência hierárquica superior

decidir sobre a sua própria competência, bem como sobre a cisão ou não

de investigações. No Inq. 2.688, em que fui designado Redator para

acórdão, a Segunda Turma decidiu que “eventual separação dos processos e consequente declinação do julgamento a outra instância deve ser analisada pelo Supremo Tribunal (…)”. No mesmo sentido, reporto-me ao Inq. 3.515-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, em que o Plenário entendeu que “cabe apenas ao próprio tribunal ao qual toca o foro por prerrogativa de função promover, sempre que possível, o desmembramento de inquérito e peças de investigação correspondentes, para manter sob sua jurisdição, em regra,

apenas o que envolva autoridade com prerrogativa de foro, segundo as

circunstâncias de cada caso”.

Em linha com a tese de que, com o surgimento de indícios de

envolvimento de titular do foro privativo, a apuração como um todo

deve ser enviada ao Tribunal hierarquicamente superior para decidir

sobre o âmbito de abrangência da sua competência, a Segunda Turma decidiu, na AP 871-QO, Rel. Min. Teori Zavascki, que “até que esta Suprema Corte procedesse à análise devida, não cabia ao Juízo de primeiro grau, ao deparar-se, nas investigações então conjuntamente realizadas, com suspeitos detentores de prerrogativa de foro – em razão das funções em que se encontram investidos – determinar a cisão das investigações e a remessa a esta Suprema

Corte da apuração relativa a estes últimos, com o que acabou por usurpar competência que não detinha”.

Destaque-se que essa orientação igualmente se aplica às

autoridades com prerrogativa de foro em outros Tribunais. Cabe a essas Cortes deliberarem sobre eventual desmembramento dos processos com pluralidade de agentes, quando envolvidos detentores de foro por

prerrogativa de função.

A presença de agente que seja detentor de foro por prerrogativa de

função implica que o inquérito ou o processo, como um todo, seja

submetido à competência originária e ao dever de supervisão do

Tribunal, a quem compete decidir sobre a manutenção da unidade de processo e julgamento na instância superior ou pelo desmembramento do caso, na forma do art. 80 do CPP.

Na espécie, conforme de depreende das informações do juízo

prestadas ao STJ (eDOC 28), a separação da investigação foi realizada

pelo Gaeco-MPSP, sendo remetido ao TJSP somente o procedimento

relativo aos acusados com prerrogativa (PIC 19/2019). Os demais feitos

foram mantidos perante o juiz de primeiro grau.

Ainda que o Ministério Público tenha fracionado a investigação por

critérios que reputou mais convenientes à persecução penal, o

desmembramento da ação penal só pode se legitimar por ordem do

órgão judiciário investido de competência penal para processar e julgar todos os fatos e investigados por delitos comuns ou conexos. Por esse motivo, todos os procedimentos deveriam ter sido encaminhados ao foro prevalente para atuar na causa, o que não ocorreu na presente situação.

Dentro desse contexto, caberia ao TJSP avaliar os limites e a extensão

de sua própria competência e, desta forma, deliberar sobre a aplicação, ou

não, da norma contida no art. 80 do CPP, que prevê a separação

facultativa dos processos. No entanto, o trâmite dos procedimentos em

relação aos coinvestigados sem prerrogativa de foro prosseguiu perante

juízo incompetente (1ª Vara da Comarca de Orlândia/SP), que os

desmembrou ao não encaminhá-los na sua totalidade ao TJSP.

Embora a reunião de processos, a teor do que dispõe o Enunciado

704 da Súmula do STF (“Não viola as garantias do juiz natural, da ampla

defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”), não seja obrigatória, a remessa ao Tribunal competente para apreciar a causa em face de autoridade detentora de prerrogativa de foro é imprescindível para fins de deliberação sobre a cisão, ou não, do feito. O órgão judiciário de inferior jurisdição não pode fazê-lo, sob pena de usurpação da competência de que se encontra investido o forum attractionis.

Destaque-se que a estrita observância às regras processuais penais,

em especial àquelas que se referem à garantia do juiz natural, é essencial

para a preservação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão

submetido à persecução penal do Estado. Há, inclusive, um componente

ético, valorativo e material que decorre da estrita observância às regras de

competência no exercício da jurisdição criminal. Não por outra razão,

eventual descumprimento das leis processuais deve necessariamente

resultar em consequências jurídicas, sob pena de esvaziamento, por via

indireta, de salvaguardas institucionais implementadas para contenção

de abusos e ilegalidades.

O rigor com o devido processo legal é ainda mais necessário nas

fases preliminares da persecução penal, em que os atos praticados pelos

agentes estatais visam essencialmente à obtenção de elementos

informativos para subsidiar o futuro oferecimento da denúncia. Diante da

necessidade de realização de diligências invasivas e altamente

prejudiciais aos direitos do cidadão, há de se dar concretude às regras

formais e de competência que buscam implementar a observância a

garantias mínimas de devido processo legal e do direito a um julgamento

justo.

A respeito das repercussões geradas pela investigação criminal na

esfera de direitos do investigado, explica Alberto Zacharias Toron que o

simples caminhar de um inquérito contra um cidadão, mais que

preocupação, pode trazer danos objetivos não só à sua imagem e, por

conseguinte, à sua dignidade, mas um séquito de gravames que vão

desde a constrição de bens até eventual prisão (Habeas Corpus: controle do devido processo legal, questões controvertidas e de processamento do

writ. 5ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2023, p. 210).

Reitere-se que a definição do juízo competente constitui questão de

natureza constitucional, já que se encontra correspondência com a

garantia fundamental do juiz natural, prevista pelo art. 5º, XXXVIII e LIII,

da Constituição de 1988. De acordo com essa garantia, os julgamentos

devem ser realizados pela autoridade jurisdicional competente, a qual

deve ser fixada para cada caso, sendo proibida a designação de juízos ou

tribunais de exceção.

Além disso, cumpre esclarecer que a fixação da competência deve

obedecer a determinadas características, como a legalidade, pois deve ser

fixada em observância à reserva de lei (ou, sendo o caso, reserva de

Constituição); a imperatividade, o que significa a impossibilidade de ser

derrogada por vontade das partes; a imodificabilidade, porque não pode

ser alterada durante o curso do processo (perpetuatio jurisdictionis); e a

indelegabilidade, já que não pode ser transferida por quem a possua para

outro órgão. Trata-se, portanto, de matéria de ordem pública, fundada em

princípios de interesse geral (PULIDO, Carlos Bernal, El derecho de los

derechos. Escritos sobre la aplicación de los derechos fundamentales, p.

362).

Nesses termos, a não observância da garantia do juiz natural

compromete a atuação do magistrado de piso, que não poderia

supervisionar as investigações que estavam em curso à época,

considerando a presença de autoridade com foro especial na prática dos delitos em apuração.

A respeito da separação dos feitos, assim se manifestou o TJSP no

julgamento do habeas corpus lá impetrado pela defesa do ora recorrente:

“Com efeito, além de o PIC n° 94.0531.0000085/2020 ter sido instaurado de forma separada justamente porque o exprefeito possuía foro por prerrogativa de função à época das investigações, o Juízo de origem desmembrou o feito em

relação a Oswaldo Ribeiro Junqueira Neto, de modo que as investigações passaram a ser presididas por este Tribunal nos autos n° 2261864-26.2020.8.26.0000.

Por oportuno, não era mesmo necessário que todo o feito

tivesse sido encaminhado ao TJ/SP, sendo que a acertada cisão

feita pelo Juízo a quo visou economia processual, além de ter

sido recepcionada por este Tribunal, já que não avocou para si

a condução da investigação de todos os envolvidos e apenas

deixou de presidir as investigações após Oswaldo Ribeiro

Junqueira Neto ter perdido o mandato.” (eDOC 21, p. 7, grifo

nosso)

Percebe-se a existência de vício na decisão do TJSP acerca da

desnecessidade da remessa de todos os feitos decorrentes da deflagração

da “Operação Loki” para o exame do próprio Tribunal. Não se pode

falar em economia processual quando se está diante da violação a uma garantia fundamental da pessoa investigada. Tendo isso em conta, destaca-se a impropriedade da convalidação desse ato, que padece de nulidade absoluta.

Acerca desse tema, o art. 567 do Código de Processo Penal

estabelece, de forma clara, a nulidade de atos decisórios praticados por

juízo incompetente, senão observe-se:

“Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos

decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.”

Ao tratar deste dispositivo, Ricardo Jacobsen Gloeckner escreve que:

“A incompetência é condição de validade dos atos processuais. A norma não distingue entre incompetência relativa e absoluta. […] Se a prática de atos processuais pressupõe a competência para a sua realização, ratificar um ato

sem qualquer pressuposto de validade é inadmissível. Pois atos

absolutamente inválidos, como se sabe, por que despidos dos requisitos mais elementares para sua validade, devem ser refeitos (e não ratificados).” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen.

In: GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto

Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo

Penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. p. 1.047).

De modo semelhante, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance

Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (As Nulidades no Processo

Penal. São Paulo: RT, 2011) ressaltam que a delimitação da competência

territorial no processo penal é racionalizada pelo prisma do interesse

público subjacente à persecução. Essa leitura afasta a possibilidade de se

reproduzir, no processo penal, a máxima de que a competência territorial

seria meramente relativa e, por isso, prorrogável. Como destacam os

autores:

“Nos casos da competência de foro, o legislador pensa preponderantemente no interesse de uma das partes em defende-se melhor, de modo que a intercorrência de certos fatores pode modificar as regras ordinárias de competência territorial. Costuma-se, pois, falar em competência relativa,

prorrogável. Todavia, no processo penal, em que o fato comum é o da consumação do delito (artigo 70 do CPP), acima do interesse da defesa é considerado o interesse público expresso no princípio da verdade real; onde se deram os fatos é mais provável que se consigam provas idôneas que os reconstituam mais facilmente no espírito do juiz. Por isso, mitiga-se, no

processo penal, a diferença entre competência absoluta e relativa: mesmo esta pode ser examinada pelo juiz de ofício (CPP, artigo 109) o que não acontece no civil.” (As Nulidades no Processo Penal. São Paulo: RT, 2011).

Destarte, conquanto seja possível a manutenção de determinados

atos processuais, em especial diante de situações de risco, a regra

prevalecente no âmbito das nulidades processuais por incompetência

aponta para a desconstituição de todos os atos decisórios praticados pelo

juízo incompetente.

Ressalte-se que essa regra deve ser aplicada com especial ênfase nas

hipóteses de decisões proferidas por juízos manifestamente

incompetentes, tal como ocorreu no caso. Assim, as diligências

investigativas efetuadas sem a supervisão do TJSP, porque ilícitas, não

poderiam subsidiar o acervo probatório da AP 100161358.2021.8.26.0404.

Essa mácula cotamina os atos subsequentes praticados, entre eles a

sentença proferida pelo juízo da 1ª Vara Judicial da Comarca de Orlândia,

que resultou na condenação do recorrente pelo delito do art. 2º, §4º, II, da

Lei 12.850/2013, à pena 6 (seis) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de

reclusão, em regime fechado, e a perda do cargo e função e a interdição

no desempenho do exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8

(oito) anos subsequentes ao cumprimento da pena. Esse fato já é

suficiente e demonstra, por si só, o prejuízo sofrido pelo recorrente.

Quanto ao suposto encontro fortuito de provas, à primeira vista,

causa estranheza que as medidas cautelares especificamente direcionadas

a “Vado” apenas tenham sido requeridas após a perda do seu mandato

(em 14.9.2020), com retorno dos autos à 1ª Vara da Comarca de Orlândia.

Especialmente considerando a menção feita na denúncia que haveria

inúmeras mensagens nos celulares apreendidos de coinvestigados

corroborando a afirmação de que “na condição de chefe do Poder Executivo local, responsável pela gestão e ordenação de despesas, competia ao denunciado OSWALDO autorizar a abertura e homologar os procedimentos licitatórios, assim como ratificar as dispensas de licitação, razão pela qual é evidente que tinha ciência e aquiesceu a todas as fraudes identificadas” (eDOC 6, p. 8, grifo nosso). Entretanto, as medidas de busca e apreensão, sequestro e medidas diversas da prisão tendo ele por alvo foram deferidas pelo citado juízo em 20.10.2021, ao receber a denúncia em face dele, do recorrente e de outros 23 corréus pelo crime de organização criminosa (eDOC 8). No ponto, rememore-se que o PIC foi instaurado em 22.8.2018 e a operação policial foi deflagrada em 2019.

Logo, parece pouco crível a tese de que a menção ao envolvimento

do ex-prefeito nos crimes investigados tenha ocorrido após a realização

da segunda quebra de sigilo telemático de e-mails trocados entre os

integrantes da organização criminosa.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso ordinário em habeas

corpus para reconhecer a violação às regras de competência no foro por

prerrogativa de função e à garantia fundamental do juiz natural e, em

consequência, declarar a nulidade da decisão do Juízo da 1ª Vara da

Comarca de Orlândia que deferiu a quebra do sigilo telemático de e-mails

de coinvestigados nos autos n° 1000456-21.2019.8.26.0404, bem como dos

atos decisórios posteriores praticados, entre eles, o recebimento da

denúncia pelo crime de organização criminosa e a sentença condenatória

proferida na AP 1001613-58.2021.8.26.0404.

Comuniquem-se ao TJSP e ao Juízo da 1ª Vara da Comarca de

Orlândia/SP sobre o teor da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 22 de maio de 2025.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

 

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