
O modo como o rosto-símbolo do principal noticiário da Globo discorreu sobre seus impasses existenciais mais íntimos convidou o Brasil inteiro a torcer para que ele consiga ficar mais perto dos filhos que estudam e trabalham fora do Brasil
Na segunda-feira, como de costume, liguei o Jornal Nacional. Quando ouvi William Bonner, falando na primeira pessoa, explicar que, cansado de fazer só as coisas que precisava fazer, sem ter tempo de fazer as coisas que gostaria de fazer, decidiu deixar a bancada do noticiário, não pude deixar de me lembrar de uma canção de Chico Buarque. O nome da canção é A voz do dono e o dono da voz. Lançada em 1981, no disco Almanaque, ela nos fala de um cantor (“o dono da voz”) que quis trocar de patrão (ao qual ele servia bancando “a voz do dono”). E por que ele quis trocar? Ora, porque “a voz ficou cansada”.
Na música, o final não é feliz. O “dono da voz” fica com raiva e o roteiro se complica. Para William Bonner, no entanto, o desfecho promete ser menos trágico. Até feliz, quem sabe. Ele ficará exatamente onde está por mais dois meses. Em novembro, entrará em férias prolongadas. Só retornará no ano que vem, quando passará a integrar a equipe do Globo Repórter.
Sim, final feliz à vista. Seu rosto poderá descansar. Seguirá com o mesmo dono, é verdade, mas terá um papel menos absorvente. Ele não terá mais que representar o rosto do Jornal Nacional, da opinião da Rede Globo, da visão de mundo da Rede Globo, da imponência discursiva da Rede Globo. Ele terá apenas que ser o rosto de uma fachada lateral da Globo, com uma rotina mais leve, mais amena, mais turística. O dono do rosto terá mais tempo para fazer mais das coisas que “gostaria” de fazer. Mais ainda, terá mais espaço para ser o rosto de si mesmo – ao menos por uns dias da semana.
Claro que não será tão simples. Depois de ter depositado 29 anos de seu rosto na estampa do mais poderoso telejornal do Brasil, não vai ser tarefa fácil reencontrar o rosto que teria sido de si mesmo. A gente se pergunta: como será o desafio de localizar em algum lugar do passado o rosto que, restaurado, poderá assumir a função de rosto de si mesmo no futuro? Bem, como dizem por lá, “o futuro já começou”. Em outros termos, o percurso de volta está apenas no início.
A televisão vampiriza sem dó as faces que por ela trafegam. Na ordem do espetáculo, a fisionomia humana sempre serve de suporte para a fisionomia de um logotipo, o que imprime cicatrizes dolorosas nessa matéria estranha chamada subjetividade. Desmontar essa transfusão de identidades requer arte, coragem e muita energia. É difícil, seguramente, mas não há de ser impossível.
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